quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Investigar sim, mas longe de casa

Um colega e amigo comentou um post anterior em que eu defendia a vantagem de os estudantes de doutoramento ou mestrado escolherem temas para investigação que não estivessem directamente relacionados com os respectivos locais de trabalho. Argumentava que, pelo contrário seria positivo "um conhecimento profundo do contexto de funcionamento de um sistema, processo, etc."
Antes do mais agradeço ao Pedro Penteado ter-me respondido e discordado de mim. Estou convencido que só com discussão entre nós poderemos avançar alguma coisa na afirmação da nossa área científica.
Como a questão é interessante, e importante, e complexa, decidi fazer um novo post em vez de responder ao comentário dele.
No essencial, esta resposta constará da transcrição de um excerto de um dos poucos livros publicados em português sobre investigação qualitativa (Bogdan e Biklen, 1999). Mas antes disso, gostaria de fazer um pequeno comentário acerca do que é dito ser o "conhecimento profundo", dos respectivos locais de trabalho que supostamente beneficiaria a qualidade da investigação.
Ora se houve algo que aprendi com Barradas de Carvalho foi que não há nada mais ilusório do que o "conhecimento" obtido directamente através dos sentidos ou, digamos, da experiência e da prática diária. O que se obtém nestes casos são percepções muitas vezes ilusórias, que não resistem a uma simples reflexão epistemológica. Afinal, não nos diz a nossa experiência que a Terra é plana e o Sol se move à sua volta? E quantas vezes somos surpreendidos por conclusões que contrariam muito do que a nossa experiência diária nos levou a acreditar ser verdade. Isto para não entrar na própria discussão do que a verdade é ou não é...
E como pode um investigador livrar-se de suspeita de parcialidade, por exemplo ao analisar uma resposta a uma entrevista em que a prática do seu serviço é posta em causa? Como é sabido, à mulher de César não basta ser honesta. É que abundam por aí os "estudos" sobre serviços, que já li algures serem do tipo "olhem lá que bons que nós somos"!
Podem-se fazer estudos sobre os próprios serviços? Podem. Mas é preciso uma atenção especial e fazer um esforço suplementar para contornar os perigos de subjectividade e afinal provar que sim, é a mesma coisa, isto é foram feitos com todos os cuidados para assegurar critérios de confiança e credibilidade da investigação.
Muitos outros argumentos podem ser aduzidos em defesa da minha posição. Li sobre casos de pessoas que tiveram de optar entre mudar de emprego ou mudar de tópico.
Segue então a citação acima prometida, com uma recomendação para uma leitura se não de todo o livro pelo menos do capítulo completo "A escolha de um estudo" (pp. 85-88).


A segunda sugestão consiste na conveniência de não escolher um assunto em que está pessoalmente envolvido. Se ensina numa escola, por exemplo, não deve escolhê-la como local de pesquisa. (...) "Porquê? Não terei vantagens, em relação a alguém estranho se estudar a minha própria escola?Tenho relações excelentes e acesso garantido". Por vezes, isto pode ser verdade, e podem ser razões suficientes para ignorar o nosso conselho, mas, sobretudo num primeiro estudo, as razões para não o fazer são mais fortes. As pessoas intimamente envolvidas num ambiente têm dificuldade em distanciar-se, quer de preocupações pessoais, quer do conhecimento prévio que têm das situações. Para estas, muito frequentemente, as suas opiniões são mais do que "definições da situação", constituem a verdade.
Os outros protagonistas, no local onde efectua a sua pesquisa, se o conhecem bem, dificilmente o poderão considerar um observador imparcial. Mais facilmente o consideram como um professor ou membro de um grupo específico, como uma pessoa que representa determinada corrente de opinião e determinados interesses. Podem não se sentir à vontade para falar despreocupadamente como o fariam com outro investigador. Estudando a sua própria escola, por exemplo, um professor não pode esperar que o director discuta consigo objectivamente as suas opiniões acerca de outros colegas ou decisões que tomou no que diz respeito a contratações e despedimentos.
Conduzir uma investigação com pessoas que conhece pode ser confuso e embaraçoso. O treino de um investigador, mais do que a aprendizagem de competências e procedimentos específicos, consiste na análise de impressões acerca de si próprio e da sua relação com os outros. Implica que se sinta confortável no papel de "investigador". Se os objectos do seu estudo são pessoas que conhece, a transferência da sua personalidade própria para a de investigador faz-se de forma ambígua.
Apesar de lhe termos dado todos estes conselhos não é obrigatório segui-los de forma rígida. Você, principiante, pode achar que é suficientemente experiente ou que temcom os seus colegas uma relação tal que não vai ter de se preocupar com as questões referidas. Força! Pode tentar: se obtiver bons resultados, óptimo; se não o conseguir não lhe prometemos não dizer "já o tínhamos avisado".


Bogdan, R & Biklen, S. (1994). Investigação qualitativa em educação : Uma introdução à teoria e aos métodos. Porto : Porto Editora